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quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Memórias de uma boneca de pano III


Um grito de dor
Zanna Santos


A chuva fina me encharcava e tornava pesado o meu corpo que de tão ensopado permaneceu inerte. A lama castigava-me ! Senti-me afundar! Os meus ouvidos tapados conseguiam captar vozes que soavam de todos os lados. Pedidos de socorro! Minhas pálpebras não abriam e eu não podia ver, limitei-me a ouvir e a imaginar. A diversidade de sons me torturava deixando as minhas idéias desnorteadas. Lembrava-me da Ana Paula correndo comigo pelo vão da casa numa tentativa desesperada de alcançar a saída até sermos alcançadas por uma avalanche de terra molhada.

A Ana tinha nove anos e morava com a vovó Luiza num barraco de madeira no pé de uma encosta. . Viviam da bondade alheia. Eu as via agradecer a Deus por cada pedaço de pão, cada grão de arroz e feijão que comiam. Misteriosamente , elas eram felizes. Conseguiam tirar motivo para sorrir onde outros só lamentariam e em momento algum as vi negligenciar o amor de uma para com a outra. De tantos lugares que passei, de todos os amores que vivi e desgraças que presenciei, sou testemunha ocular da complexidade desse sentimento.

As gotas consecutivas em meu rosto me devolveram aquela cova em que parecia estar os meus trapos. A luz do entendimento afastava a névoa que cegava-me e aos poucos meu coração tomado por um ritmo alucinante, temeroso daquilo que já suspeitava, saltava do peito. _Aninha! Aninha! Os gritos desesperados da vovó Luiza ecoavam. Eu não tinha percebido que estava deitada sobre o seu corpo submerso no barro; minha cabeça em seu colo e seus braços a me envolver na tentativa vã de proteger-me. Que menina mais linda era a Aninha! Doce como o mel das abelhas celestes, pomposa na fala, uma suplente angelical. Ainda ali, deitada em seu túmulo de lama e barro, transcendia sua forma real.

A vovó Luiza instintivamente lança-se sobre a netinha e agarrando-a em seus braços frágeis, enrugados pela degradação natural e os maus tratos da vida, beija-lhe o rosto e clama a Deus que a devolva numa súplica doída e só.

O tempo para! Dezenas de pessoas presentes testemunham o vazio, o silêncio dos corpos sem alma e o calar dos ainda esperançosos soterrados. Quem ousaria interromper a manifestação intensa da dor que invade o coração de quem fica, de quem repousa em seu regaço os restos mortais de quem se foi para sempre. Aquela senhora, no cálice do infortúnio, tomou do fel da separação e embriagada se fez a própria personificação da amargura. Uma cena que acontecia com o mesmo impacto trazido pela avalanche que acometera toda aquela desventura.

Fui atirada para o alto e vi, mesmo desejando não ver, seres humanos enterrados vivos; ouvi, ainda que não desejando ouvir, grandes lamentações...





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